I
Há muito tempo queria ter escrito
este texto. Ficou muitos meses engavetado na cabeça, junto a tantos outros. Os textos
não vêm, acham-se fúteis, superficiais, dispensáveis. E talvez sejam mesmo. E o
curioso é que este seja justamente sobre escrever textos, sobre a dificuldade
em colocar as palavras no papel ou no Word. É por isso que espero não me
perder.
Que medo é esse da palavra escrita? Não sei. Mas
o que pega, o que pega mesmo, não é só a palavra escrita, mas a palavra em um espaço
discursivo público, já que as palavras podem sobreviver tranquilas em gavetas
de cômodas ou atormentando as cabeças que tentam dormir. Não sei a razão de termos
medo das palavras a serem publicadas, jogadas no mundo, rodando à procura de
leitores.
Não sei também qual foi o motivo que
impediu minha mãe de escrever e publicar um comentário em uma rede social
quando a pedi que contasse a experiência dela em uma manifestação contra o
aumento da tarifa de ônibus ocorrida há alguns anos... Da mesma forma, também não
sei o porquê de minha avó, professora desde a infância, recusar-se a escrever memórias,
mesmo tendo tanta história e tantos casos pitorescos e impressionantes sobre
sua vida e atuação política. Eu não sei por que só bastam os relatos orais – às vezes nem isso–, mas talvez eu desconfie.
Dirão: “Que isso, Elza? Olha só
quanto comentarista de portal de notícias, olha quanta opinião no Twitter,
tanto juiz de última hora no Facebook. Todo mundo se arvorando em emitir
opinião sobre tudo!”. Sim, é bem evidente que nos últimos anos, especialmente
nos dez últimos, a experiência de fala e escrita públicas mudou
consideravelmente. Entretanto, é uma experiência muito restrita a alguns grupos
e ainda pouco explorada. Embora possa atingir grandes proporções e repercussão,
é uma experiência que se desenvolve em espaço restrito também (geralmente
ligado ao privado, como redes de amizade). Além disso, não deixa de existir uma
espécie de necessidade por uma fala especializada ou por “alguém que diga
melhor que eu o que eu penso”.
Isso porque, sem querer aprofundar demais
no assunto, a escrita pública é uma experiência difícil para muitas pessoas em
nosso país, que está caminhando a duras penas em relação ao desenvolvimento da
educação e do letramento, ou mesmo em relação ao acesso dos meios de propagação
e socialização de ideias e saberes.
Passei muitos anos não compreendendo
a pouca participação de colegas em debates ou a dificuldade em querer expressar
opiniões e defender pontos de vista. Percebi isso na escola, na faculdade e no
trabalho. Poucos ousam levantar a voz e se posicionar, contrapor ou explicar o
que compreenderam.
Não é difícil detectar nesse
comportamento os reflexos das estruturas de poder e da organização social. Há sempre
alguém que merece ser ouvido, enquanto outros devem se calar. Há sempre um medo
de ser reprovado por quem detém esse poder de voz. Há sempre um medo de ser
tido como “polêmico e criador de caso”, características consideradas negativas e distantes da cordialidade. E, acrescento ainda, há
sempre um medo de que toda e qualquer discussão seja levada para o lado pessoal
– e, muitas, muitas vezes dessa forma são interpretadas as discussões e debates
de ideias.
II
Parece sempre haver alguém que merece mais dizer algo e ser ouvido. E lido. A palavra é, ao mesmo tempo, o instrumento e o reflexo da atuação e das relações de poder no espaço público. Assim como, do outro lado, o silêncio remete-se à ausência de poder decisório extensivo a todos os outros que não puderam ter a voz ouvida.
Há pouco tempo percebi que o
silêncio nas discussões nesses espaços públicos era mais frequente nas
mulheres. E quando esses espaços são tidos como esferas de poder, quanto mais
alto o posto, menos elas estão presentes. A causa dessa pequena presença feminina,
levando-se em conta a proporção de mulheres na população, era algo que eu já
tentava compreender, procurando estar atenta às questões histórico-sociais e culturais que
restringiram a participação da mulher. Entretanto, demorei a perceber que essa
restrição poderia resultar no silêncio ou na pouca fala das que já estavam/estão
presentes.
A exposição pública de ideias foi e continua sendo algo quase sempre restrito a homens. É fácil constatar que é ainda recente e pequena a
participação de mulheres em muitas áreas e espaços . Não admira que elas ainda tenham esses entraves até
mesmo inconscientes e tendem a delegar a expressão de seus pensamentos a alguém
que já esteja acostumado a esses espaços, que desde menino poderia ouvir falar
de política ou a frequentar, junto com o pai, o espaço público que lhe era de
direito, até então. As filhas demoraram a ouvir as conversas dos adultos e a
poder frequentar o espaço de socialização das ideias. E ainda entraram
desacreditadas, tidas como frágeis, ignorantes, fúteis e superficiais, muitas
vezes consideradas tímidas ou “ousadas demais” diante de uma voz de autoridade
tradicional (e autoritária, diga-se).
Cresci ouvindo minha mãe debater e
discursar. Talvez seja por isso que achava quase natural falar em público. Ainda
assim demorou a se impor em mim essa vontade. Sempre havia algo no ar que
desabonasse a necessidade de falar. Poder-se-ia culpar a timidez. Ou, sem consciência ainda do fosso da desigualdade de gênero, intuísse que não seria
muito bom falar. "Mulher fala demais".
Mesmo assim, fui aprendendo a falar cada vez
mais. Só que minhas colegas continuavam mais tímidas. Mais que eu, que ficava
com placas vermelhas pelo corpo ao falar em público? Depois, no
trabalho, achei ainda mais estranho essa timidez delas. Éramos todas donas,
aparentemente, de uma voz ou poder decisório como professoras (professor,
aquele que socialmente é a autoridade da voz e, muitas vezes, o autoritário
silenciador de outras).
Nas reuniões, um cotovelo cutuca e uma voz
sussurra: “fala isso e isso também”. “Você pode falar também”. “Ah, não. Deixa”.
E, assim, deixa o corpo se ajeitar na cadeira. E deixa a voz mais alta continuar,
sem ser interrompida, as explicações, exortações e imposições. E deixa que algumas
poucas vozes tenham a fama de encrenqueiras e insubmissas por tentarem expor o
que pensam ou por discordarem de algumas coisas.
Foi aí que percebi que o problema não era
só o silêncio delas; que o problema também seria existirem vozes que não se
calam nunca, que se arvoram por sempre terem o que dizer. Vozes que geralmente
são mais graves e altas. Elas sobrepõem as mais agudas. As vozes de gente tida
como falante – “ah, como mulher fala!” – vão se silenciando aos poucos. Até sumir.
Até ter só cotovelo cutucando ou a só falar em corredores, aos sussurros. E as
outras, silenciadoras, nem perceberam que sufocaram, que negaram. Ou até podem perceber.
III
Outras mulheres, professoras também,
explicaram-me que isso de praticamente só homem falar em salas de aula ou
reuniões é muito mais comum do que eu conseguira constatar. Mesmo em lugares
onde a maioria numérica era de mulheres, é comum ter homens monopolizando o
discurso. Simplesmente não se calam ou não percebem que a fala excessiva pode
estar sufocando outras falas.
Numa palestra, Sheryl Sandberg, chefe operacional
do Facebook, falou sobre as dificuldades das mulheres em se tornarem líderes. Ainda
que se tenha focado no contexto de trabalho empresarial, Sandberg destaca,
entre outras, uma característica e/ou limitação individual que está presente na
vida pública e, por conseguinte, vida política como um todo: a dificuldade em impor a fala ou de se expressar em
reuniões. Sem querer, a mulher se coloca “fora da mesa” das discussões e
consegue sequer reconhecer o seu direito à voz, o que a impediria, segundo a
palestrante, de ter destaque e de mostrar a própria competência.
É óbvio que ninguém sente receio de abrir a
boca para falar do nada. Há, como eu disse anteriormente, todo um contexto
sócio-histórico e cultural a influenciar, ainda hoje, o desempenho das mulheres nesse tipo
de situação. Lembremos que frequentar, dispor e se dedicar à vida pública são conquistas
recentes.
Ainda sobre a questão da fala da mulher no
trabalho, é sintomático o preconceito que ajuda a perpetuar o silêncio e a
impedir que mulheres possam se expressar. O tumblr Uma Feminista Cansada cita o exemplo de um portal de notícia que distorce as informações de uma pesquisa, que justamente referia-se à percepção da fala
masculina e feminina no ambiente de trabalho:
“A
notícia estrangeira falava sobre um estudo sobre percepção de homens e mulheres
no trabalho, afirmando que, quando mulheres falavam bastante, eram
vistas como mandonas e chatas, e quando homens falavam a mesma
quantidade de palavras, eram considerados competentes. Era um
estudo precisamente feito pra denunciar o sexismo no ambiente de trabalho.
A
distorção feita pelo portal culmina em uma constatação do tipo “se quiser ter
sucesso no trabalho, é melhor ficar calada” expõe claramente a tendência
preconceituosa em relação às mulheres que se destacam. É novamente a
necessidade de silenciar, como se falar no espaço público – portanto, espaço
político – fosse privilégio unicamente destinado a homens.
IV
Mas e o que a fala das mulheres têm a ver, necessariamente, com o exercício político/público da escrita?
Se
a fala, enquanto parte essencial da vida pública e política, não se efetiva
como deveria, o panorama da escrita mostra-se menos ainda animador.
No
texto “Metodologia feminista e letramento, nossos primeiros passos”, Joana
Plaza Pinto[i]
relata que percebeu, nos trabalhos educativos desenvolvidos por ela e outras
professoras, a dificuldade e/ou inexperiência da maioria das mulheres, em diferentes
espaços de inserção, em “lidar com a fala e a escrita públicas”. As mulheres
geralmente atribuíam essas dificuldades a limitações pessoais, mesmo quando elas
tinham formação e habilidades necessárias para lidar com essas situações.
Joana
cita pesquisas que mostram a inserção crescente das mulheres no ambiente
escolar (muitas vezes chega a ser superior ao de homens matriculados), o
aumento da escolaridade e um interesse maior por leitura (principalmente,
livros e revistas). Entretanto, quando se refere à leitura que reflete opinião,
informação e debates instantâneos (“voltados para o mundo público, exigente de
alta assimilação e ação e prioritariamente voltado para o campo do político”),
o número de mulheres leitoras é menor que o de homens. Segundo a autora, isso
demonstra que o entrave das mulheres continua sendo o espaço público.
De
acordo com o diagnóstico feito pela autora em um curso, a maioria das mulheres
relata não gostar de escrever, mesmo afirmando unanimemente gostar de ler. A relação
gostar de ler/escrever se inverte com os homens. A autora constata que, mesmo
as mulheres com alto grau de escolaridade, declaram dificuldades em produzir
textos para serem publicados.
Por
tudo isso, acredito que a inserção efetiva da mulher na vida política
apresenta-se ainda intrinsecamente ligada a essas questões e entraves
internalizados dos aspectos discriminatórios existentes, bem como a exclusão massiva de mulheres em vários espaços dominados por homens, que, como vimos, não estão dispostos a perder privilégios.
Atuar para que mulheres possam assumir a palavra e o espaço público mostra-se
como um grande desafio da atualidade para os movimentos feministas, por mais incrível que isso possa parecer
para muitos. Sobretudo para quem estiver envolvido no trabalho de desenvolver as
habilidades de outras mulheres. Ainda mais quando precisa romper os próprios
entraves e se perceber também como detentora de voz e de escrita. Ainda que o texto
saia extenso demais como este; ainda que ela corra o risco de se perder e perdê-lo por
aí.
[i]
PINTO, Joana Plaza (org.). Entrelinhas:
Para ler e escrever sobre sexo, prazer e poder. Goiânia: Grupo Transas do
Corpo, 2004.