Engraçado como coisas e acontecimentos,
aparentemente tão insignificantes, não saem da memória e reaparecem junto com
outras coisas e acontecimentos. É o que se dá com uma cena que volta e meia
ressurge na lembrança. Era um dia como os outros, sem nada de diferente: ida ao
trabalho, numa escola pública da periferia da cidade, sol a pino, muitas
crianças chegando agitadas para mais um dia de aula. É quando aparece, em um
ponto próximo, mas nem tanto, uma carroça na qual viajavam um homem e três
crianças no sentido oposto ao da escola.
Nada de incomum, diriam. Cena mais que corriqueira
nesse bairro onde carroças, cavalos, bois e até burros convivem, quase
harmoniosamente, com os automóveis, as cercas elétricas das casas, os
altíssimos muros (como há ladrões por essas bandas!) que mal escondem os
sobrados em cores berrantes (última moda, mesmo que seja uma combinação
excessivamente contrastante e até pouco tempo não usual: verde-escuro e
alaranjado fosforescentes num prédio comercial, rosa e roxo numa casa,
amarelo-gemada e verde-bandeira num casarão, e por aí vai) e suas piscinas,
vários barracões inacabados, de chão batido e com a eterna telha eternite –
quando não, muitos barracos feitos de lona.
Enfim, alguma coisa do que se chama atualmente de
urbano, digno dos grandes centros urbanos deste país: esse misto de
precariedade, improvisação, combinando, feito verde e alaranjado, com o que há
de mais moderno em termos de conforto e comodidade (cerca elétrica?). Não
esquecendo, é claro, como disse antes, o tom rural: uso de carroças e burros.
Chamo de burro porque, para ser honesta, ainda não
sei diferenciar com os do mesmo gênero: me pareceu um burro, ou uma mula, ou
seja lá o que for, o que antes eu só conhecia por meio de gravuras ou pela
televisão e que tive a chance de ver, outro dia, assim, tão de pertinho. É uma
figura até simpática, com aquela melancolia no olhar...
Mas, para ser franca, não era bem isso o que me
propus falar: era alguma particularidade daquele quarteto, sob aquele sol
quente, transportando-se naquela carroça. E digo que não era bem a carroça que
me incomodava.
Os quatro, indiferentes ao que se passava em volta
– e o que se passava em volta não dando mostras de estar menos indiferente ao
que se passava com os passageiros da carroça –, cantavam aquela música em alto
e bom som, já que eu os podia ouvir mesmo a uma boa distância. Aquela música,
não sei ao certo o refrão: “... não me amole, não estou nessa / O que eu quero:
sossego / O que eu quero: sossego...”
Penso que era mais ou menos assim o refrão ou parte
da canção interpretada por Tim Maia que aquelas pessoas cantavam entusiasmadas.
Está aí o ponto ao qual eu queria chegar: como me
tocou vê-las cantar aquela música daquele jeito.
Outras canções vieram, juntamente com o meu pai ou
a minha mãe cantando as que passavam no toca-discos (a “era” vinil). Mas,
naquele momento, quem veio mesmo foi o meu pai, quase a me dar lições de
música, principalmente a do tempo dele, como aquela com a qual ele me irritava,
ao me perceber entrando na adolescência (ah, como eu odiava estar virando
“mocinha”!): “Você menina-moça / Mais menina que mulher... / Joia preciosa /
Cada um deseja e quer...”
É... O quarteto da carroça e o Tim Maia tinham
razão: o que queremos – cantar! E que venha o sossego.
Dezembro de
2004.