domingo, 24 de março de 2013

Um quarteto em dó maior



Engraçado como coisas e acontecimentos, aparentemente tão insignificantes, não saem da memória e reaparecem junto com outras coisas e acontecimentos. É o que se dá com uma cena que volta e meia ressurge na lembrança. Era um dia como os outros, sem nada de diferente: ida ao trabalho, numa escola pública da periferia da cidade, sol a pino, muitas crianças chegando agitadas para mais um dia de aula. É quando aparece, em um ponto próximo, mas nem tanto, uma carroça na qual viajavam um homem e três crianças no sentido oposto ao da escola.
Nada de incomum, diriam. Cena mais que corriqueira nesse bairro onde carroças, cavalos, bois e até burros convivem, quase harmoniosamente, com os automóveis, as cercas elétricas das casas, os altíssimos muros (como há ladrões por essas bandas!) que mal escondem os sobrados em cores berrantes (última moda, mesmo que seja uma combinação excessivamente contrastante e até pouco tempo não usual: verde-escuro e alaranjado fosforescentes num prédio comercial, rosa e roxo numa casa, amarelo-gemada e verde-bandeira num casarão, e por aí vai) e suas piscinas, vários barracões inacabados, de chão batido e com a eterna telha eternite – quando não, muitos barracos feitos de lona.
Enfim, alguma coisa do que se chama atualmente de urbano, digno dos grandes centros urbanos deste país: esse misto de precariedade, improvisação, combinando, feito verde e alaranjado, com o que há de mais moderno em termos de conforto e comodidade (cerca elétrica?). Não esquecendo, é claro, como disse antes, o tom rural: uso de carroças e burros.
Chamo de burro porque, para ser honesta, ainda não sei diferenciar com os do mesmo gênero: me pareceu um burro, ou uma mula, ou seja lá o que for, o que antes eu só conhecia por meio de gravuras ou pela televisão e que tive a chance de ver, outro dia, assim, tão de pertinho. É uma figura até simpática, com aquela melancolia no olhar...
Mas, para ser franca, não era bem isso o que me propus falar: era alguma particularidade daquele quarteto, sob aquele sol quente, transportando-se naquela carroça. E digo que não era bem a carroça que me incomodava.
Os quatro, indiferentes ao que se passava em volta – e o que se passava em volta não dando mostras de estar menos indiferente ao que se passava com os passageiros da carroça –, cantavam aquela música em alto e bom som, já que eu os podia ouvir mesmo a uma boa distância. Aquela música, não sei ao certo o refrão: “... não me amole, não estou nessa / O que eu quero: sossego / O que eu quero: sossego...”
Penso que era mais ou menos assim o refrão ou parte da canção interpretada por Tim Maia que aquelas pessoas cantavam entusiasmadas.
Está aí o ponto ao qual eu queria chegar: como me tocou vê-las cantar aquela música daquele jeito.
Outras canções vieram, juntamente com o meu pai ou a minha mãe cantando as que passavam no toca-discos (a “era” vinil). Mas, naquele momento, quem veio mesmo foi o meu pai, quase a me dar lições de música, principalmente a do tempo dele, como aquela com a qual ele me irritava, ao me perceber entrando na adolescência (ah, como eu odiava estar virando “mocinha”!): “Você menina-moça / Mais menina que mulher... / Joia preciosa / Cada um deseja e quer...”
É... O quarteto da carroça e o Tim Maia tinham razão: o que queremos – cantar! E que venha o sossego.

Dezembro de 2004.



sexta-feira, 8 de março de 2013

I - Dia 8 de março

“Quando a gente não sabe ler e escrever, é tratada como indigente, não existe”




O dia 8 de março foi adquirindo significados diferentes para mim ao longo dos anos, ainda que não deixassem de estar muito interligados. Se eu fosse rememorar os acontecimentos pessoais, a data traria de volta a separação dos meus pais – de casas, já que eu, uma menina de onze anos, não conseguia mais ver um casamento ali –, ocorrida há exatos vinte anos.  Outro fato marcante foi o nascimento de uma das minhas primas, recebida e amada, em um momento mais tranquilo e acolhedor, como mais uma menina da família de muitas mulheres. Mariana completa dez anos hoje.
Além desse significado pessoal, eu dificilmente conseguiria, antes, estabelecer uma ligação à luta das mulheres como a que faço hoje. Esta espécie de consciência que consegui surgiu com o tempo e, acredito, deve-se muito ao meu aprendizado com a sala de aula, no meu trabalho de professora. Antes disso, eu sabia que outras mulheres lutaram para eu ter os direitos que hoje possuo ou para almejar uma liberdade sempre ainda por conseguir. Minha consciência parava por aí. Não percebia as enormes amarras a que submetiam o meu sexo. Acreditava que era um problema meu, individual, sanado com esforço, muito esforço. Tudo o que eu desejasse seria fruto de uma luta solitária ou da minha família. Apenas vislumbrada para mim, então, a luta coletiva, que traria uma mudança social profunda, deveria vir e era também sonhada, mas de uma forma longínqua, distante da minha realidade e do meu tempo.
É difícil explicar tudo o que podemos aprender quando nos tornamos professores. Na verdade, tornamo-nos aprendizes de uma vida não explicada na universidade ou pouco vista nos livros. De tudo o que tenho aprendido, talvez seja a consciência da quase indigência e invisibilidade da mulher, sobretudo a mulher da periferia – outrora do campo – que me fez ligar os pontos, entender um pouco a intrincada rede de exploração, de opressão e de desigualdade de gênero evidenciada e conjugada à de classe. Embora minhas origens não fossem distantes das delas, descortinou-se uma realidade como uma versão ainda mais dura e tensa da minha própria. Essa coincidência de realidades- irmãs mostrou-se não ser produto de um acaso cruel do destino.
*
Hoje a aluna E., que estudou na escola no ano passado e apareceu para devolver um livro, falou que não se matriculou no Ensino Médio. Não daria para conciliar a escola, o desgastante trabalho, a criação dos filhos adolescentes, o marido e o cuidado da casa. Justo ela que sonha em ser professora e que saberia como as realidades-irmãs estabelecem conexões entre as pessoas e ajudariam a transpor algumas distâncias.
Ah, as distâncias! As distâncias mal vislumbradas por alguém que dificilmente saberá o que é ter sido proibida de estudar pelo pai, como foi E., ou pelo marido, como foi D., a aluna que chorou durante a aula hoje. D. disse que o trecho de uma música estudada durante a aula era sobre ela. Era sobre como ela errou por não ter estudado, por ter sido enganada pelo filho ao assinar um papel quando só sabia desenhar o próprio nome e que, por isso, estaria sofrendo as consequências. O trecho da música[1] selecionado por ela foi:

No espaço que eu trilhei, experiência acumulei
Na guerra da vida errei e acertei
E sei que as coisas não são fáceis pra mim
Mas ergo a cabeça, isso não é o fim
Provando a cada dia que tenho o meu valor

A aluna E. também já tinha explicado, com lágrimas, o que é sonhar com o estudo e vê-lo desvanecer a cada etapa, a cada convívio violento com o pai e, mais tarde, com o marido, pai dos seus filhos. Agora, explica, só voltará à escola quando se aposentar e criar os filhos. Justo ela que sonhara em ser professora, que saberia responder bem a outra professora quando esta dissesse que “a aluna fulana não pensa, não sabe pensar”, porque “não sabe escrever ‘direito’”. Porque diz “alembro” da minha história que, por causa das distâncias, talvez você, professora, não queira ver que seja irmã da sua. Justo E. quem me disse que não saber ler e escrever era viver como uma indigente. Justo ela de quem uma professora falou ter a cabeça ruim e não saber pensar.


[1] Mulher Guerreira, do grupo Atitude Feminina.

terça-feira, 5 de março de 2013

Para dar sequência à Semana da Mulher, hj queria ter compartilhado um vídeo que eu e colegas de um curso fizemos com minhas alunas da Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos. Uma pequena parte da trajetória de vida, do processo de exclusão escolar, da violência doméstica sofrida, dos sonhos e dos anseios delas está lá. Enquanto não consigo postar, vejam o documentário "Mulheres Invisíveis", produzido pela Sempreviva Organização Feminista (SOF), com apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), abordando o tema das mulheres e o mercado de trabalho:

segunda-feira, 4 de março de 2013

Música e Mulher: Tigresa

Hoje tem Gal com Tigresa pra começar a Semana da Mulher no blog:



Não sou mulher. Então por que a luta das mulheres me diz respeito?*




A luta das mulheres é minha luta também porque não viverei em uma sociedade com igualdade de direitos e de condições enquanto mulheres receberem salário menor que o meu para a mesma função e cargo.
Porque elas ainda ocupam poucos cargos de liderança, mesmo quando a média de escolaridade é maior que a dos homens ou que tenham experiência e saber. Desejo que elas tenham direito ao saber e à experiência. Quero que elas tenham tanta voz quanto eu na vida pública e política.
Porque sou filho de uma mulher...
tenho filha(s).
irmã(s).
sobrinha(s).
neta(s).
sou casado com/namoro uma.
tenho colegas mulheres.
tenho amigas.
Porque nem mesmo preciso conhecer uma mulher para saber que elas têm o direito de viver com dignidade, sendo respeitadas em suas escolhas. E que possam ter escolhas.
Porque não suportaria saber que elas sofreram ou sofrerão algum tipo de violência física e psicológica e que tenham poucas oportunidades e direitos assegurados.
Porque sofro por saber que pelo menos dez mulheres morrem todos os dias no Brasil vítimas de violência doméstica. Sei que a cada cinco minutos uma mulher é agredida no país. 70% delas foram agredidas pelos companheiros/ maridos.
Porque amo a liberdade e gostaria que a mulher fosse livre e realmente dona do seu próprio corpo, vontade e prazer. E que me dá prazer saber que ela sente prazer.
Porque eu não serei “aquele cara” que força a barra. Sei que sexo sem consentimento não é sexo, é estupro. Sei que de 12 a 25% das mulheres sofreram ataques ou foram violentadas sexualmente por seus companheiros ou ex-companheiros em alguma ocasião de suas vidas. Sei também que a maior parte da violência contra mulheres é praticada por alguém da família ou de pessoas próximas a elas.
Porque quero que as mulheres tenham direito de ir e vir e que não sintam medo de andar pela rua, de serem abordadas ou de serem xingadas. Quero que elas não sejam culpadas pela violência física ou verbal que sofrerem porque acho que nada justifica um crime desses.
Porque gostaria que as mulheres tivessem direito de escolha e que, mesmo sendo donas de casa ou empregadas domésticas ou o que quer que desejem ser, o trabalho delas fosse valorizado.
Porque acho que o trabalho doméstico e o cuidado e a educação das crianças são trabalhos muito importantes e eu gostaria de compartilhá-los.
É por tudo isso que eu respeito e que me diz respeito a luta das mulheres.

*Com auxílio luxuoso de Róbson Bié, que me sugeriu o uso das pesquisas. O texto só reflete algumas das numerosas questões relacionadas a gênero. Muita coisa ainda poderia aparecer por aqui.

Atitude Feminina: Mulher guerreira