sexta-feira, 8 de março de 2013

I - Dia 8 de março

“Quando a gente não sabe ler e escrever, é tratada como indigente, não existe”




O dia 8 de março foi adquirindo significados diferentes para mim ao longo dos anos, ainda que não deixassem de estar muito interligados. Se eu fosse rememorar os acontecimentos pessoais, a data traria de volta a separação dos meus pais – de casas, já que eu, uma menina de onze anos, não conseguia mais ver um casamento ali –, ocorrida há exatos vinte anos.  Outro fato marcante foi o nascimento de uma das minhas primas, recebida e amada, em um momento mais tranquilo e acolhedor, como mais uma menina da família de muitas mulheres. Mariana completa dez anos hoje.
Além desse significado pessoal, eu dificilmente conseguiria, antes, estabelecer uma ligação à luta das mulheres como a que faço hoje. Esta espécie de consciência que consegui surgiu com o tempo e, acredito, deve-se muito ao meu aprendizado com a sala de aula, no meu trabalho de professora. Antes disso, eu sabia que outras mulheres lutaram para eu ter os direitos que hoje possuo ou para almejar uma liberdade sempre ainda por conseguir. Minha consciência parava por aí. Não percebia as enormes amarras a que submetiam o meu sexo. Acreditava que era um problema meu, individual, sanado com esforço, muito esforço. Tudo o que eu desejasse seria fruto de uma luta solitária ou da minha família. Apenas vislumbrada para mim, então, a luta coletiva, que traria uma mudança social profunda, deveria vir e era também sonhada, mas de uma forma longínqua, distante da minha realidade e do meu tempo.
É difícil explicar tudo o que podemos aprender quando nos tornamos professores. Na verdade, tornamo-nos aprendizes de uma vida não explicada na universidade ou pouco vista nos livros. De tudo o que tenho aprendido, talvez seja a consciência da quase indigência e invisibilidade da mulher, sobretudo a mulher da periferia – outrora do campo – que me fez ligar os pontos, entender um pouco a intrincada rede de exploração, de opressão e de desigualdade de gênero evidenciada e conjugada à de classe. Embora minhas origens não fossem distantes das delas, descortinou-se uma realidade como uma versão ainda mais dura e tensa da minha própria. Essa coincidência de realidades- irmãs mostrou-se não ser produto de um acaso cruel do destino.
*
Hoje a aluna E., que estudou na escola no ano passado e apareceu para devolver um livro, falou que não se matriculou no Ensino Médio. Não daria para conciliar a escola, o desgastante trabalho, a criação dos filhos adolescentes, o marido e o cuidado da casa. Justo ela que sonha em ser professora e que saberia como as realidades-irmãs estabelecem conexões entre as pessoas e ajudariam a transpor algumas distâncias.
Ah, as distâncias! As distâncias mal vislumbradas por alguém que dificilmente saberá o que é ter sido proibida de estudar pelo pai, como foi E., ou pelo marido, como foi D., a aluna que chorou durante a aula hoje. D. disse que o trecho de uma música estudada durante a aula era sobre ela. Era sobre como ela errou por não ter estudado, por ter sido enganada pelo filho ao assinar um papel quando só sabia desenhar o próprio nome e que, por isso, estaria sofrendo as consequências. O trecho da música[1] selecionado por ela foi:

No espaço que eu trilhei, experiência acumulei
Na guerra da vida errei e acertei
E sei que as coisas não são fáceis pra mim
Mas ergo a cabeça, isso não é o fim
Provando a cada dia que tenho o meu valor

A aluna E. também já tinha explicado, com lágrimas, o que é sonhar com o estudo e vê-lo desvanecer a cada etapa, a cada convívio violento com o pai e, mais tarde, com o marido, pai dos seus filhos. Agora, explica, só voltará à escola quando se aposentar e criar os filhos. Justo ela que sonhara em ser professora, que saberia responder bem a outra professora quando esta dissesse que “a aluna fulana não pensa, não sabe pensar”, porque “não sabe escrever ‘direito’”. Porque diz “alembro” da minha história que, por causa das distâncias, talvez você, professora, não queira ver que seja irmã da sua. Justo E. quem me disse que não saber ler e escrever era viver como uma indigente. Justo ela de quem uma professora falou ter a cabeça ruim e não saber pensar.


[1] Mulher Guerreira, do grupo Atitude Feminina.

3 comentários:

  1. Excelente. O tom pessoal me coloca em uma condição de escuta que acabo revivendo cada cena descrita aqui. E., essa personagem da vida cotidiana, demonstra uma sabedoria que encontrou pelas lacunas das falas, ora autoritária de uma professora, ora na docilidade daquela que a fez identificar-se. Ser professor é exatamente isso; estar diante de uma gama gigantesca de subjetividades... misturado na diversidade e maravilhando com os presentes que é a história pessoal de cada um. Parabéns pelo texto, Dona Menina.

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    1. Obrigada, Marcos. Você não faz ideia de como sua opinião é importante para mim. Sei que você passa por situações semelhantes e admiro também sua postura com os alunos e sua compreensão das "realidades-irmãs". O ato pedagógico é, sem som sombra de dúvida, um ato político.

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  2. Parabéns, Elza. Texto comovente, sem pieguices; consegue ser pessoal sem ser confessional. Excelente o texto, excelente a postura profissional. Esta é uma reflexão político-pedagógica que, de fato, não se ensina, não se aprende nem se encontra descrita em nenhum lugar. A formação e a atuação docentes são, antes de tudo, políticas, sim.

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