O dia
8 de março foi adquirindo significados diferentes para mim ao longo dos anos,
ainda que não deixassem de estar muito interligados. Se eu fosse rememorar os acontecimentos
pessoais, a data traria de volta a separação dos meus pais – de casas, já que
eu, uma menina de onze anos, não conseguia mais ver um casamento ali –, ocorrida
há exatos vinte anos. Outro fato
marcante foi o nascimento de uma das minhas primas, recebida e amada, em um
momento mais tranquilo e acolhedor, como mais uma menina da família de muitas mulheres.
Mariana completa dez anos hoje.
Além
desse significado pessoal, eu dificilmente conseguiria, antes, estabelecer uma
ligação à luta das mulheres como a que faço hoje. Esta espécie de consciência
que consegui surgiu com o tempo e, acredito, deve-se muito ao meu aprendizado
com a sala de aula, no meu trabalho de professora. Antes disso, eu sabia que
outras mulheres lutaram para eu ter os direitos que hoje possuo ou para almejar
uma liberdade sempre ainda por conseguir. Minha consciência parava por aí. Não percebia
as enormes amarras a que submetiam o meu sexo. Acreditava que era um problema
meu, individual, sanado com esforço, muito esforço. Tudo o que eu desejasse seria
fruto de uma luta solitária ou da minha família. Apenas vislumbrada para mim,
então, a luta coletiva, que traria uma mudança social profunda, deveria vir e
era também sonhada, mas de uma forma longínqua, distante da minha realidade e
do meu tempo.
É difícil
explicar tudo o que podemos aprender quando nos tornamos professores. Na verdade,
tornamo-nos aprendizes de uma vida não explicada na universidade ou pouco vista
nos livros. De tudo o que tenho aprendido, talvez seja a consciência da quase
indigência e invisibilidade da mulher, sobretudo a mulher da periferia –
outrora do campo – que me fez ligar os pontos, entender um pouco a intrincada
rede de exploração, de opressão e de desigualdade de gênero evidenciada e
conjugada à de classe. Embora minhas origens não fossem distantes das delas,
descortinou-se uma realidade como uma versão ainda mais dura e tensa da minha
própria. Essa coincidência de realidades- irmãs mostrou-se não ser produto de
um acaso cruel do destino.
*
Hoje
a aluna E., que estudou na escola no ano passado e apareceu para devolver um
livro, falou que não se matriculou no Ensino Médio. Não daria para conciliar a
escola, o desgastante trabalho, a criação dos filhos adolescentes, o marido e o
cuidado da casa. Justo ela que sonha em ser professora e que saberia como as
realidades-irmãs estabelecem conexões entre as pessoas e ajudariam a transpor
algumas distâncias.
Ah,
as distâncias! As distâncias mal vislumbradas por alguém que dificilmente saberá
o que é ter sido proibida de estudar pelo pai, como foi E., ou pelo marido, como
foi D., a aluna que chorou durante a aula hoje. D. disse que o trecho de uma
música estudada durante a aula era sobre ela. Era sobre como ela errou por não
ter estudado, por ter sido enganada pelo filho ao assinar um papel quando só
sabia desenhar o próprio nome e que, por isso, estaria sofrendo as consequências.
O trecho da música[1] selecionado
por ela foi:
No espaço
que eu trilhei, experiência acumulei
Na guerra da vida errei e acertei
E sei que as coisas não são fáceis pra mim
Mas ergo a cabeça, isso não é o fim
Provando a cada dia que tenho o meu valor
Na guerra da vida errei e acertei
E sei que as coisas não são fáceis pra mim
Mas ergo a cabeça, isso não é o fim
Provando a cada dia que tenho o meu valor
A aluna E.
também já tinha explicado, com lágrimas, o que é sonhar com o estudo e vê-lo desvanecer
a cada etapa, a cada convívio violento com o pai e, mais tarde, com o marido, pai
dos seus filhos. Agora, explica, só voltará à escola quando se aposentar e
criar os filhos. Justo ela que sonhara em ser professora, que saberia responder
bem a outra professora quando esta dissesse que “a aluna fulana não pensa, não
sabe pensar”, porque “não sabe escrever ‘direito’”. Porque diz “alembro” da
minha história que, por causa das distâncias, talvez você, professora, não
queira ver que seja irmã da sua. Justo E. quem me disse que não saber ler e
escrever era viver como uma indigente. Justo ela de quem uma professora falou ter
a cabeça ruim e não saber pensar.
Excelente. O tom pessoal me coloca em uma condição de escuta que acabo revivendo cada cena descrita aqui. E., essa personagem da vida cotidiana, demonstra uma sabedoria que encontrou pelas lacunas das falas, ora autoritária de uma professora, ora na docilidade daquela que a fez identificar-se. Ser professor é exatamente isso; estar diante de uma gama gigantesca de subjetividades... misturado na diversidade e maravilhando com os presentes que é a história pessoal de cada um. Parabéns pelo texto, Dona Menina.
ResponderExcluirObrigada, Marcos. Você não faz ideia de como sua opinião é importante para mim. Sei que você passa por situações semelhantes e admiro também sua postura com os alunos e sua compreensão das "realidades-irmãs". O ato pedagógico é, sem som sombra de dúvida, um ato político.
ExcluirParabéns, Elza. Texto comovente, sem pieguices; consegue ser pessoal sem ser confessional. Excelente o texto, excelente a postura profissional. Esta é uma reflexão político-pedagógica que, de fato, não se ensina, não se aprende nem se encontra descrita em nenhum lugar. A formação e a atuação docentes são, antes de tudo, políticas, sim.
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