sexta-feira, 1 de março de 2013

Sobre meninas e lobas




“Quero publicar um livro. Como faço para publicar um livro?” Antes das perguntas, a jovem entrou pela sala procurando pela “moça bonita”: “Só pode ser você.” Não me deu tempo de responder, já foi logo dizendo atropeladamente o que a tinha trazido até a sala dos professores: como faço para publicar um livro? Atrapalhada e ainda intimidada pela garota de quem eu tentava lembrar se já tinha sido minha aluna, pensei em como responder. “Você escreveu um livro?”, foi o que consegui dizer. “Não, mas quero escrever uma história de terror.” Comecei a tentar encontrar palavras para o que eu julgava ser uma resposta.
A moça aparentava ter uns 14 ou 15 anos e o que se destacava no rosto era sorriso com diastema. “Sabe o filme Sweeney Todd, o Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet? Quero escrever uma história como aquela.” Quis saber se ela estudava na escola ou se morava perto. “Não, estudo no Estefânia e moro na Vila Mutirão.” A menina tinha 12 anos e a mãe não sabia que ela havia andado de dois a três quilômetros até chegar à escola onde trabalho.

Daiane – era este o nome dela – contou que a história era de vampiros e que não teria final feliz: “O Johnny Depp morre no final do filme, coitadinho. Mas é de histórias assim que gosto.” Falava sem parar, parecendo perder o fôlego, e apertava as mãos. Não entendia por que eu não tinha marido ou namorado.

Alguma coisa na menina, no seu jeito esparolado e inquieto, me lembrou de pessoa que conheci em outra escola. Suely apareceu do nada. Tinha traços azulados no lugar onde ficariam as sobrancelhas. Ela disse que trabalhava lá, mas seu nome não estava na folha de ponto. Um dia levantou a blusa surrada e mostrou os seios com próteses de silicone para as funcionárias da escola.

Não vi os seios de Suely, mas se a saia tivesse sido levantada, talvez teríamos descoberto seu sexo modificado. Ela ficou por uns dias na escola até que começou a falar em francês, inglês, alemão e outra língua que não saberíamos identificar. A família pernambucana disse, ao telefone, ter procurado por ela por muitos anos até descobrir que não vivia mais no país do marido endinheirado. A última vez que vi Suely foi em um ponto de ônibus. Ela estava com pessoas de uma igreja.

Apesar do corpo um pouco desenvolvido sob uma roupinha rasgada nas mangas, Daiane tem mesmo 12 anos, pensei. Dava para ver nos olhos dela que talvez fosse ainda mais jovem. Comecei a me preocupar por uma menina ter andado tanto e àquela hora da noite. “Sua mãe deve estar preocupada com você. Andar sozinha é perigoso”, disse-lhe. “Não tenho medo de fantasmas ou de almas penadas. Adoro andar pelas matas da região.” É claro que ela não tinha medo. Como a deusa, seria uma caçadora destemida. “Vou escrever a história e mostrar pra você.” Os caninos eram bem separados dos incisivos e, mesmo assim, o sorriso era encantador. “Você já leu algum livro com história de terror?”, perguntei. “Não, mas assisto a filmes.”

Pedi, então, que ela escrevesse a história e me mostrasse ou que aparecesse mais cedo para procurar outra professora. “Não ande sozinha à noite, pode ser perigoso. Há pessoas que podem lhe fazer mal, você sabia?” Daiane disse não saber quem poderia fazer mal para ela.

Apressei em levá-la para fora do prédio da escola porque minha preocupação só aumentava. Queria que ela fosse logo para casa. Com certeza, a mãe estaria preocupada também. Uma filha andando pelas matas, àquela hora da noite, sozinha, só poderia estar transformando-se em loba. Os dentes ficariam ensanguentados após a caçada.

 

                                                                                 Antoni Taulé, Couloir, 1983.

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