“Quero publicar um
livro. Como faço para publicar um livro?” Antes das perguntas, a jovem entrou
pela sala procurando pela “moça bonita”: “Só pode ser você.” Não me deu tempo
de responder, já foi logo dizendo atropeladamente o que a tinha trazido até a
sala dos professores: como faço para publicar um livro? Atrapalhada e ainda
intimidada pela garota de quem eu tentava lembrar se já tinha sido minha aluna,
pensei em como responder. “Você escreveu um livro?”, foi o que consegui dizer.
“Não, mas quero escrever uma história de terror.” Comecei a tentar encontrar
palavras para o que eu julgava ser uma resposta.
A moça aparentava ter
uns 14 ou 15 anos e o que se destacava no rosto era sorriso com diastema. “Sabe
o filme Sweeney Todd, o
Barbeiro Demoníaco da Rua
Fleet?
Quero escrever uma história como aquela.”
Quis saber se ela estudava na escola ou se morava perto. “Não, estudo no
Estefânia e moro na Vila Mutirão.” A
menina tinha 12 anos e a mãe não sabia que ela havia andado de dois a três
quilômetros até chegar à escola onde trabalho.
Daiane – era este o nome dela –
contou que a história era de vampiros e que não teria final feliz: “O Johnny
Depp morre no final do filme, coitadinho. Mas é de histórias assim que gosto.”
Falava sem parar, parecendo perder o fôlego, e apertava as mãos. Não entendia
por que eu não tinha marido ou namorado.
Alguma coisa na menina, no seu
jeito esparolado e inquieto, me lembrou de pessoa que conheci em outra escola.
Suely apareceu do nada. Tinha traços azulados no lugar onde ficariam as
sobrancelhas. Ela disse que trabalhava lá, mas seu nome não estava na folha de
ponto. Um dia levantou a blusa surrada e mostrou os seios com próteses de
silicone para as funcionárias da escola.
Não vi os seios de Suely, mas se
a saia tivesse sido levantada, talvez teríamos descoberto seu sexo modificado.
Ela ficou por uns dias na escola até que começou a falar em francês, inglês,
alemão e outra língua que não saberíamos identificar. A família pernambucana
disse, ao telefone, ter procurado por ela por muitos anos até descobrir que não
vivia mais no país do marido endinheirado. A última vez que vi Suely foi em um
ponto de ônibus. Ela estava com pessoas de uma igreja.
Apesar do corpo um pouco
desenvolvido sob uma roupinha rasgada nas mangas, Daiane tem mesmo 12 anos,
pensei. Dava para ver nos olhos dela que talvez fosse ainda mais jovem. Comecei
a me preocupar por uma menina ter andado tanto e àquela hora da noite. “Sua mãe
deve estar preocupada com você. Andar sozinha é perigoso”, disse-lhe. “Não
tenho medo de fantasmas ou de almas penadas. Adoro andar pelas matas da região.”
É claro que ela não tinha medo. Como a deusa, seria uma caçadora destemida.
“Vou escrever a história e mostrar pra você.” Os caninos eram bem separados dos
incisivos e, mesmo assim, o sorriso era encantador. “Você já leu algum livro
com história de terror?”, perguntei. “Não, mas assisto a filmes.”
Pedi, então, que ela escrevesse a
história e me mostrasse ou que aparecesse mais cedo para procurar outra
professora. “Não ande sozinha à noite, pode ser perigoso. Há pessoas que podem
lhe fazer mal, você sabia?” Daiane disse não saber quem poderia fazer mal para
ela.
Apressei em levá-la para fora do
prédio da escola porque minha preocupação só aumentava. Queria que ela fosse
logo para casa. Com certeza, a mãe estaria preocupada também. Uma filha andando
pelas matas, àquela hora da noite, sozinha, só poderia estar transformando-se
em loba. Os dentes ficariam ensanguentados após a caçada.
Antoni Taulé, Couloir, 1983.
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