sexta-feira, 22 de agosto de 2014

As mulheres e a exclusão escolar: vídeo sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres da Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos




Finalmente consegui postar o vídeo que eu e as lindas Débora Correa, Hidemi Nomura, Daniela Maroja e Flávia Castro fizemos com as alunas da Escola Municipal Bernardo Élis, de Goiânia, escola em que lecionei no noturno de 2009 a 2013. O vídeo compôs nosso trabalho final no curso de extensão da Universidade Federal de Goiás “Formação Feminista: Tramas e Redes para Mudar o Mundo”, realizado em 2012. Intitulado Palavra de mulher: a terceira jornada das alunas de uma escola de Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos, o vídeo contém os depoimentos de alunas sobre a história de exclusão escolar e os desafios que enfrentaram e enfrentam para conseguir concluir os estudos. 
Esse trabalho ainda me emociona por trazer à tona a saudade dos anos em que lecionei para essa modalidade de ensino e pelas histórias tão comoventes de opressão de gênero e de desigualdade social. Acho que vale a pena ver o vídeo e ouvir as vozes delas, ainda tão silenciadas em nossa sociedade*:









*Infelizmente não consegui postar a versão do vídeo com a legenda, que facilitaria mais o entendimento já que a qualidade do som não está das melhores. Agradeço a Hidemi Nomura por ter feito essa outra versão com legenda. Isso facilita muito o acesso ao trabalho.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A fala e a escrita públicas da mulher




I

            Há muito tempo queria ter escrito este texto. Ficou muitos meses engavetado na cabeça, junto a tantos outros. Os textos não vêm, acham-se fúteis, superficiais, dispensáveis. E talvez sejam mesmo. E o curioso é que este seja justamente sobre escrever textos, sobre a dificuldade em colocar as palavras no papel ou no Word. É por isso que espero não me perder.
Que medo é esse da palavra escrita? Não sei. Mas o que pega, o que pega mesmo, não é só a palavra escrita, mas a palavra em um espaço discursivo público, já que as palavras podem sobreviver tranquilas em gavetas de cômodas ou atormentando as cabeças que tentam dormir. Não sei a razão de termos medo das palavras a serem publicadas, jogadas no mundo, rodando à procura de leitores.
            Não sei também qual foi o motivo que impediu minha mãe de escrever e publicar um comentário em uma rede social quando a pedi que contasse a experiência dela em uma manifestação contra o aumento da tarifa de ônibus ocorrida há alguns anos... Da mesma forma, também não sei o porquê de minha avó, professora desde a infância, recusar-se a escrever memórias, mesmo tendo tanta história e tantos casos pitorescos e impressionantes sobre sua vida e atuação política. Eu não sei por que só bastam os relatos orais – às vezes nem isso–, mas talvez eu desconfie.
            Dirão: “Que isso, Elza? Olha só quanto comentarista de portal de notícias, olha quanta opinião no Twitter, tanto juiz de última hora no Facebook. Todo mundo se arvorando em emitir opinião sobre tudo!”. Sim, é bem evidente que nos últimos anos, especialmente nos dez últimos, a experiência de fala e escrita públicas mudou consideravelmente. Entretanto, é uma experiência muito restrita a alguns grupos e ainda pouco explorada. Embora possa atingir grandes proporções e repercussão, é uma experiência que se desenvolve em espaço restrito também (geralmente ligado ao privado, como redes de amizade). Além disso, não deixa de existir uma espécie de necessidade por uma fala especializada ou por “alguém que diga melhor que eu o que eu penso”.
            Isso porque, sem querer aprofundar demais no assunto, a escrita pública é uma experiência difícil para muitas pessoas em nosso país, que está caminhando a duras penas em relação ao desenvolvimento da educação e do letramento, ou mesmo em relação ao acesso dos meios de propagação e socialização de ideias e saberes.
            Passei muitos anos não compreendendo a pouca participação de colegas em debates ou a dificuldade em querer expressar opiniões e defender pontos de vista. Percebi isso na escola, na faculdade e no trabalho. Poucos ousam levantar a voz e se posicionar, contrapor ou explicar o que compreenderam.
            Não é difícil detectar nesse comportamento os reflexos das estruturas de poder e da organização social. Há sempre alguém que merece ser ouvido, enquanto outros devem se calar. Há sempre um medo de ser reprovado por quem detém esse poder de voz. Há sempre um medo de ser tido como “polêmico e criador de caso”, características consideradas negativas e distantes da cordialidade. E, acrescento ainda, há sempre um medo de que toda e qualquer discussão seja levada para o lado pessoal – e, muitas, muitas vezes dessa forma são interpretadas as discussões e debates de ideias.

 II
            
Parece sempre haver alguém que merece mais dizer algo e ser ouvido. E lido. A palavra é, ao mesmo tempo, o instrumento e o reflexo da atuação e das relações de poder no espaço público. Assim como, do outro lado, o silêncio remete-se à ausência de poder decisório extensivo a todos os outros que não puderam ter a voz ouvida.
            Há pouco tempo percebi que o silêncio nas discussões nesses espaços públicos era mais frequente nas mulheres. E quando esses espaços são tidos como esferas de poder, quanto mais alto o posto, menos elas estão presentes. A causa dessa pequena presença feminina, levando-se em conta a proporção de mulheres na população, era algo que eu já tentava compreender, procurando estar atenta às questões histórico-sociais e culturais que restringiram a participação da mulher. Entretanto, demorei a perceber que essa restrição poderia resultar no silêncio ou na pouca fala das que já estavam/estão presentes.
            A exposição pública de ideias foi e continua sendo algo quase sempre restrito a homens. É fácil constatar que é ainda recente e pequena a participação de mulheres em muitas áreas e espaços . Não admira que elas ainda tenham esses entraves até mesmo inconscientes e tendem a delegar a expressão de seus pensamentos a alguém que já esteja acostumado a esses espaços, que desde menino poderia ouvir falar de política ou a frequentar, junto com o pai, o espaço público que lhe era de direito, até então. As filhas demoraram a ouvir as conversas dos adultos e a poder frequentar o espaço de socialização das ideias. E ainda entraram desacreditadas, tidas como frágeis, ignorantes, fúteis e superficiais, muitas vezes consideradas tímidas ou “ousadas demais” diante de uma voz de autoridade tradicional (e autoritária, diga-se).
            Cresci ouvindo minha mãe debater e discursar. Talvez seja por isso que achava quase natural falar em público. Ainda assim demorou a se impor em mim essa vontade. Sempre havia algo no ar que desabonasse a necessidade de falar. Poder-se-ia culpar a timidez. Ou, sem consciência ainda do fosso da desigualdade de gênero, intuísse que não seria muito bom falar. "Mulher fala demais".
Mesmo assim, fui aprendendo a falar cada vez mais. Só que minhas colegas continuavam mais tímidas. Mais que eu, que ficava com placas vermelhas pelo corpo ao falar em público? Depois, no trabalho, achei ainda mais estranho essa timidez delas. Éramos todas donas, aparentemente, de uma voz ou poder decisório como professoras (professor, aquele que socialmente é a autoridade da voz e, muitas vezes, o autoritário silenciador de outras).
Nas reuniões, um cotovelo cutuca e uma voz sussurra: “fala isso e isso também”. “Você pode falar também”. “Ah, não. Deixa”. E, assim, deixa o corpo se ajeitar na cadeira. E deixa a voz mais alta continuar, sem ser interrompida, as explicações, exortações e imposições. E deixa que algumas poucas vozes tenham a fama de encrenqueiras e insubmissas por tentarem expor o que pensam ou por discordarem de algumas coisas.
Foi aí que percebi que o problema não era só o silêncio delas; que o problema também seria existirem vozes que não se calam nunca, que se arvoram por sempre terem o que dizer. Vozes que geralmente são mais graves e altas. Elas sobrepõem as mais agudas. As vozes de gente tida como falante – “ah, como mulher fala!” – vão se silenciando aos poucos. Até sumir. Até ter só cotovelo cutucando ou a só falar em corredores, aos sussurros. E as outras, silenciadoras, nem perceberam que sufocaram, que negaram. Ou até podem perceber.

III

Outras mulheres, professoras também, explicaram-me que isso de praticamente só homem falar em salas de aula ou reuniões é muito mais comum do que eu conseguira constatar. Mesmo em lugares onde a maioria numérica era de mulheres, é comum ter homens monopolizando o discurso. Simplesmente não se calam ou não percebem que a fala excessiva pode estar sufocando outras falas.
Numa palestra, Sheryl Sandberg, chefe operacional do Facebook, falou sobre as dificuldades das mulheres em se tornarem líderes. Ainda que se tenha focado no contexto de trabalho empresarial, Sandberg destaca, entre outras, uma característica e/ou limitação individual que está presente na vida pública e, por conseguinte, vida política como um todo: a dificuldade em impor a fala ou de se expressar em reuniões. Sem querer, a mulher se coloca “fora da mesa” das discussões e consegue sequer reconhecer o seu direito à voz, o que a impediria, segundo a palestrante, de ter destaque e de mostrar a própria competência.
É óbvio que ninguém sente receio de abrir a boca para falar do nada. Há, como eu disse anteriormente, todo um contexto sócio-histórico e cultural a influenciar, ainda hoje, o desempenho das mulheres nesse tipo de situação. Lembremos que frequentar, dispor e se dedicar à vida pública são conquistas recentes.
Ainda sobre a questão da fala da mulher no trabalho, é sintomático o preconceito que ajuda a perpetuar o silêncio e a impedir que mulheres possam se expressar. O tumblr Uma Feminista Cansada cita o exemplo de um portal de notícia que distorce as informações de uma pesquisa, que justamente referia-se à percepção da fala masculina e feminina no ambiente de trabalho:
“A notícia estrangeira falava sobre um estudo sobre percepção de homens e mulheres no trabalho, afirmando que, quando mulheres falavam bastante, eram vistas como mandonas e chatas, e quando homens falavam a mesma quantidade de palavras, eram considerados competentes. Era um estudo precisamente feito pra denunciar o sexismo no ambiente de trabalho.
Adivinha como o Yahoo escreveu a notícia?”
            A distorção feita pelo portal culmina em uma constatação do tipo “se quiser ter sucesso no trabalho, é melhor ficar calada” expõe claramente a tendência preconceituosa em relação às mulheres que se destacam. É novamente a necessidade de silenciar, como se falar no espaço público – portanto, espaço político – fosse privilégio unicamente destinado a homens.

IV

            Mas e o que a fala das mulheres têm a ver, necessariamente, com o exercício político/público da escrita?
            Se a fala, enquanto parte essencial da vida pública e política, não se efetiva como deveria, o panorama da escrita mostra-se menos ainda animador.
            No texto “Metodologia feminista e letramento, nossos primeiros passos”, Joana Plaza Pinto[i] relata que percebeu, nos trabalhos educativos desenvolvidos por ela e outras professoras, a dificuldade e/ou inexperiência da maioria das mulheres, em diferentes espaços de inserção, em “lidar com a fala e a escrita públicas”. As mulheres geralmente atribuíam essas dificuldades a limitações pessoais, mesmo quando elas tinham formação e habilidades necessárias para lidar com essas situações.
            Joana cita pesquisas que mostram a inserção crescente das mulheres no ambiente escolar (muitas vezes chega a ser superior ao de homens matriculados), o aumento da escolaridade e um interesse maior por leitura (principalmente, livros e revistas). Entretanto, quando se refere à leitura que reflete opinião, informação e debates instantâneos (“voltados para o mundo público, exigente de alta assimilação e ação e prioritariamente voltado para o campo do político”), o número de mulheres leitoras é menor que o de homens. Segundo a autora, isso demonstra que o entrave das mulheres continua sendo o espaço público.
            De acordo com o diagnóstico feito pela autora em um curso, a maioria das mulheres relata não gostar de escrever, mesmo afirmando unanimemente gostar de ler. A relação gostar de ler/escrever se inverte com os homens. A autora constata que, mesmo as mulheres com alto grau de escolaridade, declaram dificuldades em produzir textos para serem publicados.
            Por tudo isso, acredito que a inserção efetiva da mulher na vida política apresenta-se ainda intrinsecamente ligada a essas questões e entraves internalizados dos aspectos discriminatórios existentes, bem como a exclusão massiva de mulheres em vários espaços dominados por homens, que, como vimos, não estão dispostos a perder privilégios. Atuar para que mulheres possam assumir a palavra e o espaço público mostra-se como um grande desafio da atualidade para os movimentos feministas, por mais incrível que isso possa parecer para muitos. Sobretudo para quem estiver envolvido no trabalho de desenvolver as habilidades de outras mulheres. Ainda mais quando precisa romper os próprios entraves e se perceber também como detentora de voz e de escrita. Ainda que o texto saia extenso demais como este; ainda que ela corra o risco de se perder e perdê-lo por aí.
           
           










[i] PINTO, Joana Plaza (org.). Entrelinhas: Para ler e escrever sobre sexo, prazer e poder. Goiânia: Grupo Transas do Corpo, 2004.

domingo, 24 de março de 2013

Um quarteto em dó maior



Engraçado como coisas e acontecimentos, aparentemente tão insignificantes, não saem da memória e reaparecem junto com outras coisas e acontecimentos. É o que se dá com uma cena que volta e meia ressurge na lembrança. Era um dia como os outros, sem nada de diferente: ida ao trabalho, numa escola pública da periferia da cidade, sol a pino, muitas crianças chegando agitadas para mais um dia de aula. É quando aparece, em um ponto próximo, mas nem tanto, uma carroça na qual viajavam um homem e três crianças no sentido oposto ao da escola.
Nada de incomum, diriam. Cena mais que corriqueira nesse bairro onde carroças, cavalos, bois e até burros convivem, quase harmoniosamente, com os automóveis, as cercas elétricas das casas, os altíssimos muros (como há ladrões por essas bandas!) que mal escondem os sobrados em cores berrantes (última moda, mesmo que seja uma combinação excessivamente contrastante e até pouco tempo não usual: verde-escuro e alaranjado fosforescentes num prédio comercial, rosa e roxo numa casa, amarelo-gemada e verde-bandeira num casarão, e por aí vai) e suas piscinas, vários barracões inacabados, de chão batido e com a eterna telha eternite – quando não, muitos barracos feitos de lona.
Enfim, alguma coisa do que se chama atualmente de urbano, digno dos grandes centros urbanos deste país: esse misto de precariedade, improvisação, combinando, feito verde e alaranjado, com o que há de mais moderno em termos de conforto e comodidade (cerca elétrica?). Não esquecendo, é claro, como disse antes, o tom rural: uso de carroças e burros.
Chamo de burro porque, para ser honesta, ainda não sei diferenciar com os do mesmo gênero: me pareceu um burro, ou uma mula, ou seja lá o que for, o que antes eu só conhecia por meio de gravuras ou pela televisão e que tive a chance de ver, outro dia, assim, tão de pertinho. É uma figura até simpática, com aquela melancolia no olhar...
Mas, para ser franca, não era bem isso o que me propus falar: era alguma particularidade daquele quarteto, sob aquele sol quente, transportando-se naquela carroça. E digo que não era bem a carroça que me incomodava.
Os quatro, indiferentes ao que se passava em volta – e o que se passava em volta não dando mostras de estar menos indiferente ao que se passava com os passageiros da carroça –, cantavam aquela música em alto e bom som, já que eu os podia ouvir mesmo a uma boa distância. Aquela música, não sei ao certo o refrão: “... não me amole, não estou nessa / O que eu quero: sossego / O que eu quero: sossego...”
Penso que era mais ou menos assim o refrão ou parte da canção interpretada por Tim Maia que aquelas pessoas cantavam entusiasmadas.
Está aí o ponto ao qual eu queria chegar: como me tocou vê-las cantar aquela música daquele jeito.
Outras canções vieram, juntamente com o meu pai ou a minha mãe cantando as que passavam no toca-discos (a “era” vinil). Mas, naquele momento, quem veio mesmo foi o meu pai, quase a me dar lições de música, principalmente a do tempo dele, como aquela com a qual ele me irritava, ao me perceber entrando na adolescência (ah, como eu odiava estar virando “mocinha”!): “Você menina-moça / Mais menina que mulher... / Joia preciosa / Cada um deseja e quer...”
É... O quarteto da carroça e o Tim Maia tinham razão: o que queremos – cantar! E que venha o sossego.

Dezembro de 2004.



sexta-feira, 8 de março de 2013

I - Dia 8 de março

“Quando a gente não sabe ler e escrever, é tratada como indigente, não existe”




O dia 8 de março foi adquirindo significados diferentes para mim ao longo dos anos, ainda que não deixassem de estar muito interligados. Se eu fosse rememorar os acontecimentos pessoais, a data traria de volta a separação dos meus pais – de casas, já que eu, uma menina de onze anos, não conseguia mais ver um casamento ali –, ocorrida há exatos vinte anos.  Outro fato marcante foi o nascimento de uma das minhas primas, recebida e amada, em um momento mais tranquilo e acolhedor, como mais uma menina da família de muitas mulheres. Mariana completa dez anos hoje.
Além desse significado pessoal, eu dificilmente conseguiria, antes, estabelecer uma ligação à luta das mulheres como a que faço hoje. Esta espécie de consciência que consegui surgiu com o tempo e, acredito, deve-se muito ao meu aprendizado com a sala de aula, no meu trabalho de professora. Antes disso, eu sabia que outras mulheres lutaram para eu ter os direitos que hoje possuo ou para almejar uma liberdade sempre ainda por conseguir. Minha consciência parava por aí. Não percebia as enormes amarras a que submetiam o meu sexo. Acreditava que era um problema meu, individual, sanado com esforço, muito esforço. Tudo o que eu desejasse seria fruto de uma luta solitária ou da minha família. Apenas vislumbrada para mim, então, a luta coletiva, que traria uma mudança social profunda, deveria vir e era também sonhada, mas de uma forma longínqua, distante da minha realidade e do meu tempo.
É difícil explicar tudo o que podemos aprender quando nos tornamos professores. Na verdade, tornamo-nos aprendizes de uma vida não explicada na universidade ou pouco vista nos livros. De tudo o que tenho aprendido, talvez seja a consciência da quase indigência e invisibilidade da mulher, sobretudo a mulher da periferia – outrora do campo – que me fez ligar os pontos, entender um pouco a intrincada rede de exploração, de opressão e de desigualdade de gênero evidenciada e conjugada à de classe. Embora minhas origens não fossem distantes das delas, descortinou-se uma realidade como uma versão ainda mais dura e tensa da minha própria. Essa coincidência de realidades- irmãs mostrou-se não ser produto de um acaso cruel do destino.
*
Hoje a aluna E., que estudou na escola no ano passado e apareceu para devolver um livro, falou que não se matriculou no Ensino Médio. Não daria para conciliar a escola, o desgastante trabalho, a criação dos filhos adolescentes, o marido e o cuidado da casa. Justo ela que sonha em ser professora e que saberia como as realidades-irmãs estabelecem conexões entre as pessoas e ajudariam a transpor algumas distâncias.
Ah, as distâncias! As distâncias mal vislumbradas por alguém que dificilmente saberá o que é ter sido proibida de estudar pelo pai, como foi E., ou pelo marido, como foi D., a aluna que chorou durante a aula hoje. D. disse que o trecho de uma música estudada durante a aula era sobre ela. Era sobre como ela errou por não ter estudado, por ter sido enganada pelo filho ao assinar um papel quando só sabia desenhar o próprio nome e que, por isso, estaria sofrendo as consequências. O trecho da música[1] selecionado por ela foi:

No espaço que eu trilhei, experiência acumulei
Na guerra da vida errei e acertei
E sei que as coisas não são fáceis pra mim
Mas ergo a cabeça, isso não é o fim
Provando a cada dia que tenho o meu valor

A aluna E. também já tinha explicado, com lágrimas, o que é sonhar com o estudo e vê-lo desvanecer a cada etapa, a cada convívio violento com o pai e, mais tarde, com o marido, pai dos seus filhos. Agora, explica, só voltará à escola quando se aposentar e criar os filhos. Justo ela que sonhara em ser professora, que saberia responder bem a outra professora quando esta dissesse que “a aluna fulana não pensa, não sabe pensar”, porque “não sabe escrever ‘direito’”. Porque diz “alembro” da minha história que, por causa das distâncias, talvez você, professora, não queira ver que seja irmã da sua. Justo E. quem me disse que não saber ler e escrever era viver como uma indigente. Justo ela de quem uma professora falou ter a cabeça ruim e não saber pensar.


[1] Mulher Guerreira, do grupo Atitude Feminina.

terça-feira, 5 de março de 2013

Para dar sequência à Semana da Mulher, hj queria ter compartilhado um vídeo que eu e colegas de um curso fizemos com minhas alunas da Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos. Uma pequena parte da trajetória de vida, do processo de exclusão escolar, da violência doméstica sofrida, dos sonhos e dos anseios delas está lá. Enquanto não consigo postar, vejam o documentário "Mulheres Invisíveis", produzido pela Sempreviva Organização Feminista (SOF), com apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), abordando o tema das mulheres e o mercado de trabalho:

segunda-feira, 4 de março de 2013